sábado, 1 de outubro de 2011

Capítulo V - Retalhos de uma guerra




Do diário de campanha de Sir Nikoláos, de Askalor

17ª aurora após 2ª lua plena da primavera, ano 476 após a Unificação


Ao entardecer de hoje, fui convocado por Sua Majestade, o Rei, ao Domo Real de Askalor, onde me reuni com vários outros súditos, a fim de nos informar que nossas terras haviam sido violadas na região do Velho Condado, e que deveríamos nos preparar para uma possível batalha de grandes proporções, contra aproximadamente 36 mil homens. Nosso rei pareceu perturbado. Não era à toa. Marcharemos sem demora em direção às planícies de Bogdana. Os soldados ainda estão cuidando de suas últimas provisões. A noite será quente.

18ª aurora após 2ª lua plena da primavera, ano 476 após a Unificação

Na véspera passada, descemos o Planalto Real até os limites de Askalor, junto com o rei. Apesar da marcha incessante, os homens se mostraram bem dispostos. Estamos descansando para um breve desjejum na passagem do Estreito dos Peregrinos sob um típico sol dessa época do ano. O forte de fronteira dessa área, no qual obtivemos comida, água e demais mantimentos, é suficientemente confortável, graças ao bom trabalho das sentinelas em serviço. Partiremos em breve. Com sorte, chegaremos ao forte da divisa sálata no início da próxima aurora. O rei se deterá aqui com uma pequena armada, a fim de discorrer com os imediatos exércitos passantes sobre o ataque inimigo, e sua ameaça aos princípios da Ordem.
(...)
Hoje à noite, um mensageiro, de nome Lucius do Grande Lago me trouxe notícias das regiões de Sevânia e Everard. Suas tropas já se mobilizaram e logo se juntarão a nós na próxima fronteira. O fato de estarem prontos não é uma surpresa. Muito me conforta liderar homens sempre disponíveis para qualquer eventualidade.

19ª aurora após 2ª lua plena da primavera, ano 476 após a Unificação

Chegamos ao forte de fronteira e pedágio junto ao rio Wasswa, também chamado de “Braço Esquerdo de Sieghard” pelos nortenhos. A sentinela de vigília nos informou que as tropas de Véllamo e Muireann não estavam em posição. Aquele maldito Wiley, governante da Salácia! Nem assim ele consegue se manifestar! Verme!
Um rapaz chamado Driskoll foi enviado ao Velho Condado e retornará em breve com notícias sobre o exército inimigo. Já faz algumas auroras que desembarcaram em nossas terras, e desde então não pudemos obter nenhum tipo de retorno. Maldição! Tenho receio que já estejam marchando em direção a nós.
(...)
Driskoll retornou ao entardecer. Para a minha feliz surpresa, as legiões invasoras montaram assentamento, não esboçando vontade de avançar. Não podemos responder a essa ação. Enquanto as demais legiões do reino estiverem a caminho, estaremos ainda em menor número.
As tropas da afortunada Alódia chegaram. Vieram exaltadas com o discurso do rei. Vejo um grande número de homens comuns, milícias armadas com paus, pedras, bordões e foices. Muitos não têm sequer uma armadura leve; são raros os que vêm montados. Espero que não sejam nossas últimas forças, no entanto é motivador vê-los tão encorajados, ainda mais por saber que alguns deles se tratam de homens ricos, de família abastada, podendo facilmente se esconder por detrás de suas posses.

20ª aurora após 2ª lua plena da primavera

Esta última noite não foi tranquila. Meu sono esteve repleto de sonhos agourentos; acordei várias vezes, o que chamou a atenção de alguns vigilantes. Talvez este estado de alma tenha origem no silêncio que vem de nossos vizinhos ao sul.
Todavia, meu maior temor é que não conseguiremos unir a Assembleia dos Notáveis, já que não contamos com os vassalos sálatas até agora. Em nome da Ordem, será que não temem ferir o pacto que une nossas províncias há mais de 100 gerações? É preciso agir, e rapidamente. Sem o conselho, não pode haver planos estratégicos, nem mesmo uma batalha em nome do reino. Maldita diplomacia!
Temos resistido às insurreições locais, colocamos fim às guerras intestinas, tanto os aristocratas quanto a plebe mantêm um nível satisfatório de confiança em Sua Majestade, mesmo que, a princípio, o tenham chamado de usurpador. E tudo para quê? Para quê? Nosso litoral atacado, forças do Grande Mar mais fortes do que nunca, e quando mais precisamos nos unir contra o inimigo comum, eis que os interesses provincianos vêm falando mais alto. Desgraça dos povos! Desgraça dos governos!
(...)
Não tivemos notícias de avanço inimigo. Doloroso ponto de interrogação... Após a ceia, ouvi rumores de uma nova moléstia grassando pelas terras portuárias. Certamente uma espécie de sífilis; aquelas docas são mais sujas do que um chiqueiro de porcos. E seus habitantes, ah, mais imundos que sua própria covardia em não terem se juntado a nós até agora.
(...)
Antes da alvorada, juntamente com os generais de Alódia, darei ordens aos nossos homens, para que construam barragens e dificultem o curso de água que vai para o sul e abastece nossos invasores. Mesmo o inimigo não dando sinais de ataques diretos, e como ainda não temos comandos de Sua Majestade para atacar, não podemos simplesmente ficar de braços cruzados, à espera que se rompam as hostilidades.

21ª aurora após 2ª lua plena da primavera

Os soldados que chegaram do norte me trouxeram muitas esperanças, deixando meu espírito um pouco menos inquieto. Pude contemplar as flâmulas e os pavilhões trazidos por seus exércitos. Sevânia e Everard chegaram! Salve a Ordem! Embora o inimigo tenha estado em silêncio há várias auroras, nosso contingente geral se situa em torno de 30 mil almas.
De Sevânia, lutadores armados com espadas, machados e lanças se apresentaram esta manhã. Alguns traziam armaduras leves, outros, corseletes mais elaborados. O efetivo veio, em sua maioria, de Kêmen, uma cidade que repousa às margens do Grande Lago, conhecida por seus valentes e bravos veteranos, que serão o bastião de nossa infantaria pesada. São grandes e destemidos, porém, a meu ver, um pouco estúpidos. Estão longe da disciplina rígida de Askalor. Gostam de lutar sempre com brados de ânimo, o que pode nos conferir uma ampla vantagem em caso de confrontos reais.
Conta-se que os arqueiros de Adaluf, da província de Everard são os melhores de todo o reino, podendo acertar um falcão que imprime toda a sua velocidade em um ataque a muitas braças de distância. Pude observar arcos e bestas de todos os tipos e tamanhos, cada um representando uma aldeia ou vila daquela portentosa região. Seus corpos são esguios, com traços finos e delicados, seguramente não aptos para o combate corpo-a-corpo. Bem, com arcos soberbos e flechas certeiras como essas, quem precisa de combate corpo-a-corpo?
Dos homens que acabaram de chegar, aqueles que estavam mais dispostos e descansados se voluntariaram para a construção das barragens no Wasswa, iniciadas ontem. Desde a primeira alva até o meio-dia, muitas árvores foram ao chão para que a obra pudesse ser realizada, juntamente com enormes pedras encontradas às margens do rio.
(...)
Perto do crepúsculo, os vigilantes encontraram um mensageiro, por nome Flavius, agonizando em um canto da estrada. Estava vindo de Véllamo, ao menos foi isso o que me disseram. Foi trazido às pressas para o forte, mas os cirurgiões não conseguiram sará-lo. Estava fraco, com o corpo repleto de manchas arroxeadas. O que mais chamou a atenção dos que estavam ali, contudo, foram seus olhos. De alguma forma, suas pupilas foram consumidas, dando lugar a grandes esferas brancas, como gelo em pleno inverno. Pobre sorte a do jovem. Suspeitamos que tenha perdido a visão pouco a pouco antes de cair nesse estado de privação.
Porventura, seria esse um caso da moléstia de que tanto falam? Alguns receiam que sim. O que me aflige é, se realmente tiverem razão, a velocidade com a qual se alastra.

22ª aurora após 2ª lua plena da primavera

Mais uma aurora, e não recebemos sinais de Véllamo ou Muireann. Melhor dizendo, recebemos sim, novos casos da praga. Agora não são mais isolados, trata-se de dezenas de vítimas. Não se faz ideia de qual seja sua origem. Os soldados mais jovens dizem que provém da urina dos cavalos. Tolice! É mais provável que o Grande Mar tenha lançado sobre eles essa moléstia. Tudo o que dele emana é pernicioso, por isso, com razão, o chamam de Maretenebræ. Não há exemplo mais pertinente da sua sanguinária vontade que o surgimento inesperado dos esquadrões vindos de águas desconhecidas.
(...)
O Rei Marcus já foi informado acerca de nossas condições. Com a chegada dos guerreiros de Tranquilitah e dos arcanos do longínquo Keishu, ocorrida no meio da noite, temos um pouco mais do que a quantidade de homens trazidos pelo invasor. Falta-nos, porém, um conselho de guerra.
Mesmo assim, fiquei contente ao ver o brilho nos olhos jovens dos rapazes imberbes de Tranquilitah, dispondo-se de suas vidas imaturas por uma causa maior. Ao mesmo tempo, sinto não poder ser um anfitrião de largueza generosa, pois o que lhes ofereço é apenas um clima de combate. São soldados que ainda não concluíram a academia, portanto, ainda despreparados para sentir o odor da morte tão de perto.
Para certo alívio em minha consciência, a juventude contrasta em nosso exército com os veneráveis magos da remota Keishu, o que explica suas vestimentas volumosas e pesadas, em um clima tão ameno como o do fim da primavera. Suas habilidades sempre me despertaram desconfiança, mas há muita fé por parte dos soldados em que eles sejam uma força singular, mesmo que não haja um confronto de grandes proporções. Seu controle sobre as forças da natureza será de auxílio determinante, nesse sentido. No entanto, o que mais me intrigou foi a observação feita por eles diante dos casos da moléstia. Ela não parece ser outra coisa senão obra de bruxaria! Eu sabia! Porém, minhas hipóteses estavam incompletas. Ao contrário do que se supunha, não proveio de Maretenebræ em si, e sim dos pérfidos espíritos que nele navegavam.
(...)
Os diques já estão em estágio de conclusão. Perfeito! Isso fará com que o inimigo se desloque em direção ao Wasswa, a oeste das colinas de Bogdana, na busca de água potável. Desta feita, marcharemos e nos esconderemos por detrás das colinas, distantes 20 milhas do forte onde estamos agora. Quando os adversários virem que se trata de uma armadilha, já será tarde demais, pois desferiremos um assalto surpresa.

23ª aurora após 2ª lua plena da primavera

Pela Ordem! Desde ontem mandamos 25 homens para o interior da Salácia e nenhum retornou. Os guerreiros estão inquietos e impacientes, algumas divisões também já apresentaram casos da doença, cerca de 10 a 20 enfermos. Passamos a chamá-la simplesmente de Pestilência Cega. Até que ponto é seguro ficar aqui? Estive conversando com os demais nobres, e todos são concordes em realizar um ataque frontal, se este, é claro, for o desejo do rei.
(...)
Entre a manhã e a noite muitos homens caíram em desgraça, ceifados em suas vistas, inaptos às mais simples atividades, quanto mais aos duros momentos de batalha. Perdemos homens a cada momento. Embora suas vidas tenham sido conservadas, não são mais úteis aos exércitos.
O imediatismo de nossa conjuntura não nos deixa outra opção senão lançar fora o plano do ataque surpresa, e preparar uma investida frontal. Maldita moléstia! Ou melhor, maldita feitiçaria! Trazida por esses imundos e depravados invasores! Há auroras, nossas forças têm sido postas à prova, devido às perdas de incontáveis almas, tanto nas proximidades, quanto nos arredores do litoral. Há quem diga que a Pestilência Cega já tomou assento ao norte, além da Passagem dos Peregrinos, isso significa que nosso rei também corre perigo. Pela Ordem! As respostas que ele teria de nos mandar, que tanto conforto traria ao peito, ainda não chegaram! Será que devemos esperar pelo pior?
(...)
A mensagem de Sua Majestade Real chegou há poucos instantes. Nosso nobre soberano tomou uma decisão, ele ordena que ignoremos a província da Salácia na convocação da Assembleia dos Notáveis, marcada para essa noite, e que ataquemos de forma urgente.
(...)
Os Lordes de Sieghard foram unânimes, reuniremos o exército antes do amanhecer. Se for esse o desejo do rei, em favor da Ordem, então é o desejo de todos. À primeira vista, trata-se de uma sábia decisão. Contudo, a meu ver, deve-se lembrar que abdicamos de auroras e mais auroras de planos e estratagemas, dando lugar a uma investida desesperada e irracional. Seja o que Destino quiser.

24ª aurora após 2ª lua plena da primavera

É chegada a hora. Nossa ofensiva será face a face, não temos muitas escolhas diante do clima causado pela Pestilência. O moral dos homens está inconstante.
Juro por minha vida, por meu Rei, por meu Glorioso reino, pela sagrada Ordem, esta praga mortal, que se alastra como um parasita pernicioso, está ligada, de alguma forma, àqueles que nos violaram, por isso, não descansaremos até calcá-los sob nossas sandálias. Havemos de derramar sangue, perfurar peitorais, esmagar cabeças, destruir navios. Por tudo o que amamos, por tudo o que somos, temos de derrubar os monstros que nos envolvem.

Pela Ordem e pela Glória de Sieghard!

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