Do diário de campanha de Sir
Nikoláos, de Askalor
17ª aurora após 2ª lua plena da
primavera, ano 476 após a Unificação
Ao entardecer de hoje, fui
convocado por Sua Majestade, o Rei, ao Domo Real de Askalor, onde me reuni com
vários outros súditos, a fim de nos informar que nossas terras haviam sido
violadas na região do Velho Condado, e que deveríamos nos preparar para uma
possível batalha de grandes proporções, contra aproximadamente 36 mil homens.
Nosso rei pareceu perturbado. Não era à toa. Marcharemos sem demora em direção
às planícies de Bogdana. Os soldados ainda estão cuidando de suas últimas
provisões. A noite será quente.
18ª aurora após 2ª lua plena da
primavera, ano 476 após a Unificação
Na véspera
passada, descemos o Planalto Real até os limites de Askalor, junto com o rei.
Apesar da marcha incessante, os homens se mostraram bem dispostos. Estamos
descansando para um breve desjejum na passagem do Estreito dos Peregrinos sob
um típico sol dessa época do ano. O forte de fronteira dessa área, no qual obtivemos
comida, água e demais mantimentos, é suficientemente confortável, graças ao bom
trabalho das sentinelas em serviço. Partiremos em breve. Com sorte, chegaremos
ao forte da divisa sálata no início da próxima aurora. O rei se deterá aqui com
uma pequena armada, a fim de discorrer com os imediatos exércitos passantes
sobre o ataque inimigo, e sua ameaça aos princípios da Ordem.
(...)
Hoje à noite, um mensageiro, de
nome Lucius do Grande Lago me trouxe notícias das regiões de Sevânia e Everard.
Suas tropas já se mobilizaram e logo se juntarão a nós na próxima fronteira. O
fato de estarem prontos não é uma surpresa. Muito me conforta liderar homens
sempre disponíveis para qualquer eventualidade.
19ª aurora após 2ª lua plena da
primavera, ano 476 após a Unificação
Chegamos ao forte de fronteira e
pedágio junto ao rio Wasswa, também chamado de “Braço Esquerdo de Sieghard”
pelos nortenhos. A sentinela de vigília nos informou que as tropas de Véllamo e
Muireann não estavam em posição. Aquele maldito Wiley, governante da Salácia!
Nem assim ele consegue se manifestar! Verme!
Um rapaz
chamado Driskoll foi enviado ao Velho Condado e retornará em breve com notícias
sobre o exército inimigo. Já faz algumas auroras que desembarcaram em nossas
terras, e desde então não pudemos obter nenhum tipo de retorno. Maldição! Tenho
receio que já estejam marchando em direção a nós.
(...)
Driskoll retornou ao entardecer.
Para a minha feliz surpresa, as legiões invasoras montaram assentamento, não
esboçando vontade de avançar. Não podemos responder a essa ação. Enquanto as
demais legiões do reino estiverem a caminho, estaremos ainda em menor número.
As tropas da afortunada Alódia
chegaram. Vieram exaltadas com o discurso do rei. Vejo um grande número de
homens comuns, milícias armadas com paus, pedras, bordões e foices. Muitos não
têm sequer uma armadura leve; são raros os que vêm montados. Espero que não
sejam nossas últimas forças, no entanto é motivador vê-los tão encorajados,
ainda mais por saber que alguns deles se tratam de homens ricos, de família
abastada, podendo facilmente se esconder por detrás de suas posses.
20ª aurora após 2ª lua plena da
primavera
Esta última
noite não foi tranquila. Meu sono esteve repleto de sonhos agourentos; acordei
várias vezes, o que chamou a atenção de alguns vigilantes. Talvez este estado
de alma tenha origem no silêncio que vem de nossos vizinhos ao sul.
Todavia, meu maior temor é que
não conseguiremos unir a Assembleia dos Notáveis, já que não contamos com os
vassalos sálatas até agora. Em nome da Ordem, será que não temem ferir o pacto
que une nossas províncias há mais de 100 gerações? É preciso agir, e
rapidamente. Sem o conselho, não pode haver planos estratégicos, nem mesmo uma
batalha em nome do reino. Maldita diplomacia!
Temos resistido às insurreições
locais, colocamos fim às guerras intestinas, tanto os aristocratas quanto a
plebe mantêm um nível satisfatório de confiança em Sua Majestade, mesmo que, a
princípio, o tenham chamado de usurpador. E tudo para quê? Para quê? Nosso
litoral atacado, forças do Grande Mar mais fortes do que nunca, e quando mais
precisamos nos unir contra o inimigo comum, eis que os interesses provincianos
vêm falando mais alto. Desgraça dos povos! Desgraça dos governos!
(...)
Não tivemos notícias de avanço
inimigo. Doloroso ponto de interrogação... Após a ceia, ouvi rumores de uma
nova moléstia grassando pelas terras portuárias. Certamente uma espécie de
sífilis; aquelas docas são mais sujas do que um chiqueiro de porcos. E seus
habitantes, ah, mais imundos que sua própria covardia em não terem se juntado a
nós até agora.
(...)
Antes da alvorada, juntamente
com os generais de Alódia, darei ordens aos nossos homens, para que construam
barragens e dificultem o curso de água que vai para o sul e abastece nossos
invasores. Mesmo o inimigo não dando sinais de ataques diretos, e como ainda
não temos comandos de Sua Majestade para atacar, não podemos simplesmente ficar
de braços cruzados, à espera que se rompam as hostilidades.
21ª aurora após 2ª lua plena da
primavera
Os soldados que chegaram do
norte me trouxeram muitas esperanças, deixando meu espírito um pouco menos
inquieto. Pude contemplar as flâmulas e os pavilhões trazidos por seus
exércitos. Sevânia e Everard chegaram! Salve a Ordem! Embora o inimigo tenha
estado em silêncio há várias auroras, nosso contingente geral se situa em torno
de 30 mil almas.
De Sevânia, lutadores armados
com espadas, machados e lanças se apresentaram esta manhã. Alguns traziam
armaduras leves, outros, corseletes mais elaborados. O efetivo veio, em sua
maioria, de Kêmen, uma cidade que repousa às margens do Grande Lago, conhecida
por seus valentes e bravos veteranos, que serão o bastião de nossa infantaria
pesada. São grandes e destemidos, porém, a meu ver, um pouco estúpidos. Estão
longe da disciplina rígida de Askalor. Gostam de lutar sempre com brados de
ânimo, o que pode nos conferir uma ampla vantagem em caso de confrontos reais.
Conta-se que os arqueiros de
Adaluf, da província de Everard são os melhores de todo o reino, podendo acertar
um falcão que imprime toda a sua velocidade em um ataque a muitas braças de
distância. Pude observar arcos e bestas de todos os tipos e tamanhos, cada um
representando uma aldeia ou vila daquela portentosa região. Seus corpos são
esguios, com traços finos e delicados, seguramente não aptos para o combate
corpo-a-corpo. Bem, com arcos soberbos e flechas certeiras como essas, quem
precisa de combate corpo-a-corpo?
Dos homens que acabaram de
chegar, aqueles que estavam mais dispostos e descansados se voluntariaram para
a construção das barragens no Wasswa, iniciadas ontem. Desde a primeira alva
até o meio-dia, muitas árvores foram ao chão para que a obra pudesse ser
realizada, juntamente com enormes pedras encontradas às margens do rio.
(...)
Perto do
crepúsculo, os vigilantes encontraram um mensageiro, por nome Flavius,
agonizando em um canto da estrada. Estava vindo de Véllamo, ao menos foi isso o
que me disseram. Foi trazido às pressas para o forte, mas os cirurgiões não
conseguiram sará-lo. Estava fraco, com o corpo repleto de manchas arroxeadas. O
que mais chamou a atenção dos que estavam ali, contudo, foram seus olhos. De
alguma forma, suas pupilas foram consumidas, dando lugar a grandes esferas
brancas, como gelo em pleno inverno. Pobre sorte a do jovem. Suspeitamos que
tenha perdido a visão pouco a pouco antes de cair nesse estado de privação.
Porventura, seria esse um caso
da moléstia de que tanto falam? Alguns receiam que sim. O que me aflige é, se
realmente tiverem razão, a velocidade com a qual se alastra.
22ª aurora após 2ª lua plena da
primavera
Mais uma aurora, e não recebemos
sinais de Véllamo ou Muireann. Melhor dizendo, recebemos sim, novos casos da
praga. Agora não são mais isolados, trata-se de dezenas de vítimas. Não se faz
ideia de qual seja sua origem. Os soldados mais jovens dizem que provém da
urina dos cavalos. Tolice! É mais provável que o Grande Mar tenha lançado sobre
eles essa moléstia. Tudo o que dele emana é pernicioso, por isso, com razão, o
chamam de Maretenebræ. Não há exemplo mais pertinente da sua sanguinária
vontade que o surgimento inesperado dos esquadrões vindos de águas
desconhecidas.
(...)
O Rei Marcus já foi informado
acerca de nossas condições. Com a chegada dos guerreiros de Tranquilitah e dos
arcanos do longínquo Keishu, ocorrida no meio da noite, temos um pouco mais do
que a quantidade de homens trazidos pelo invasor. Falta-nos, porém, um conselho
de guerra.
Mesmo assim, fiquei contente ao
ver o brilho nos olhos jovens dos rapazes imberbes de Tranquilitah, dispondo-se
de suas vidas imaturas por uma causa maior. Ao mesmo tempo, sinto não poder ser
um anfitrião de largueza generosa, pois o que lhes ofereço é apenas um clima de
combate. São soldados que ainda não concluíram a academia, portanto, ainda
despreparados para sentir o odor da morte tão de perto.
Para certo alívio em minha
consciência, a juventude contrasta em nosso exército com os veneráveis magos da
remota Keishu, o que explica suas vestimentas volumosas e pesadas, em um clima
tão ameno como o do fim da primavera. Suas habilidades sempre me despertaram
desconfiança, mas há muita fé por parte dos soldados em que eles sejam uma
força singular, mesmo que não haja um confronto de grandes proporções. Seu
controle sobre as forças da natureza será de auxílio determinante, nesse
sentido. No entanto, o que mais me intrigou foi a observação feita por eles
diante dos casos da moléstia. Ela não parece ser outra coisa senão obra de
bruxaria! Eu sabia! Porém, minhas hipóteses estavam incompletas. Ao contrário
do que se supunha, não proveio de Maretenebræ em si, e sim dos pérfidos
espíritos que nele navegavam.
(...)
Os diques já estão em estágio de
conclusão. Perfeito! Isso fará com que o inimigo se desloque em direção ao
Wasswa, a oeste das colinas de Bogdana, na busca de água potável. Desta feita,
marcharemos e nos esconderemos por detrás das colinas, distantes 20 milhas do
forte onde estamos agora. Quando os adversários virem que se trata de uma
armadilha, já será tarde demais, pois desferiremos um assalto surpresa.
23ª aurora após 2ª lua plena da
primavera
Pela Ordem! Desde ontem mandamos
25 homens para o interior da Salácia e nenhum retornou. Os guerreiros estão
inquietos e impacientes, algumas divisões também já apresentaram casos da
doença, cerca de 10 a 20 enfermos. Passamos a chamá-la simplesmente de
Pestilência Cega. Até que ponto é seguro ficar aqui? Estive conversando com os
demais nobres, e todos são concordes em realizar um ataque frontal, se este, é
claro, for o desejo do rei.
(...)
Entre a manhã e a noite muitos
homens caíram em desgraça, ceifados em suas vistas, inaptos às mais simples
atividades, quanto mais aos duros momentos de batalha. Perdemos homens a cada
momento. Embora suas vidas tenham sido conservadas, não são mais úteis aos
exércitos.
O imediatismo de nossa
conjuntura não nos deixa outra opção senão lançar fora o plano do ataque
surpresa, e preparar uma investida frontal. Maldita moléstia! Ou melhor,
maldita feitiçaria! Trazida por esses imundos e depravados invasores! Há
auroras, nossas forças têm sido postas à prova, devido às perdas de incontáveis
almas, tanto nas proximidades, quanto nos arredores do litoral. Há quem diga
que a Pestilência Cega já tomou assento ao norte, além da Passagem dos
Peregrinos, isso significa que nosso rei também corre perigo. Pela Ordem! As
respostas que ele teria de nos mandar, que tanto conforto traria ao peito,
ainda não chegaram! Será que devemos esperar pelo pior?
(...)
A mensagem de Sua Majestade Real
chegou há poucos instantes. Nosso nobre soberano tomou uma decisão, ele ordena
que ignoremos a província da Salácia na convocação da Assembleia dos Notáveis,
marcada para essa noite, e que ataquemos de forma urgente.
(...)
Os Lordes de Sieghard foram
unânimes, reuniremos o exército antes do amanhecer. Se for esse o desejo do
rei, em favor da Ordem, então é o desejo de todos. À primeira vista, trata-se
de uma sábia decisão. Contudo, a meu ver, deve-se lembrar que abdicamos de
auroras e mais auroras de planos e estratagemas, dando lugar a uma investida
desesperada e irracional. Seja o que Destino quiser.
24ª aurora após 2ª lua plena da
primavera
É chegada a hora. Nossa ofensiva
será face a face, não temos muitas escolhas diante do clima causado pela
Pestilência. O moral dos homens está inconstante.
Juro por minha vida, por meu
Rei, por meu Glorioso reino, pela sagrada Ordem, esta praga mortal, que se
alastra como um parasita pernicioso, está ligada, de alguma forma, àqueles que
nos violaram, por isso, não descansaremos até calcá-los sob nossas sandálias.
Havemos de derramar sangue, perfurar peitorais, esmagar cabeças, destruir
navios. Por tudo o que amamos, por tudo o que somos, temos de derrubar os
monstros que nos envolvem.
Pela Ordem e pela Glória de
Sieghard!
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