terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Capítulo III - O Herdeiro Real (O Flagelo de Dernessus)


O nascimento de mais um herdeiro da família real.

Assim como os ventos das planícies de Bogdana, que levam velozmente o cheiro de suas flores perfumadas aos pescadores de Véllamo e Muireann, a notícia da vinda do pequenino príncipe se espalhou em pouco tempo pelo Planalto Real.

Para alguns, a informação veio com alegria. O atual rei tivera seu filho às portas dos 40 verões de idade, já seu neto, que acabava de nascer, viera quando seu filho acabava de completar 22 verões. Marcus I, o Velho, como assim o chamavam, já que se tratava de uma exceção em uma linhagem de reis que morreram jovens, não poderia estar mais contente. Sua saúde, embora contasse com algum vigor, andava debilitada e a ascensão de seu filho Marcellus ao trono, tornando-se Marcus II, parecia iminente.

Já para outros, como era o caso de Sir Maya e seus correligionários, a existência de mais um herdeiro na linha de sucessão era vista com maus olhos. Sir Maya, da rica e tradicional casa dos Krigare, os homens do Norte, responsáveis pelos treinamentos dos cavaleiros na escola militar de Tranquilitah, era presença constante no Domo do Rei, e não suportava o fato de ter que se subordinar aos atuais monarcas. Em seus olhos estava escrito que ser de uma estirpe elevada não fazia da pessoa um soberano nato. Era preciso aliar carisma com bravura, percepção com argúcia, oratória com paixão. Atributos dos quais ele possuía em excesso, e que, para muitos nobres, o fato de um homem tão poderoso quanto ele externar estes pensamentos o tornava deveras perigoso.

Enquanto fora do Castelo da Ordem, o Domo do Rei parecia estar em época de festa, lembrando em muito as finais dos torneios locais que se realizavam de ano em ano entre cavaleiros. Dentro dele, entretanto, os sentimentos em muito variavam. Em uma arrefecida câmara de seu interior, ali se encontravam o rei, seu filho e alguns de seus súditos mais íntimos para receber as congratulações pelo nascimento de seu neto. Uma importante visita era já aguardada.

A porta se abriu e o soldado à frente dela anunciou:

— Está aqui Sir Heinrich, barão de Askalor.

— Mande-o entrar — ordenou o rei, junto ao seu filho se acomodavam em cadeiras simples de carvalho ao final de uma comprida mesa disposta ao longo do espaço.

Uma figura magnífica entrou no recinto. Alto, trajava uma capa vermelha, presa em uma armadura completa prateada, com detalhes em ouro e bem delineados na superfície do aço. A qualidade de tais peças era conhecida no reino como vinda tão-só de Alódia, mais precisamente da casa dos Bheli, uma importante família local. Atrás da capa, estampava-se o símbolo dos cavaleiros da Ordem. Seus cabelos de um grisalho leve contrastavam com uma barba rala e olhos escuros. Sua presença inundava o lugar, enquanto seu semblante sério e intimidador não deixava dúvidas que aquele poderia ser o homem mais fiel à Ordem que Sieghard conheceria. Não obstante seus passos firmes em direção ao rei, uma criança que brincava com mais um garoto no aposento largou seus afazeres e apressou-se em pular no colo de Sir Heinrich.

— Papai! — Seus olhos castanhos brilharam.

O cavaleiro passou a mão nos cabelos claros e finos de seu filho.

— Heimerich! Então era aqui que você estava. Com quem está brincando, meu filho?

— Papai, olha só o que aprendi...

Sir Heinrich deixou seu filho descer do colo, que de maneira apressada pegou uma espada de madeira ao chão e rodopiou com ela, terminando numa posição de ataque com a ponta do brinquedo a um palmo do pescoço da outra criança.

— Heimerich, não assuste seu colega — não escondendo o susto, seu pai tratou de repreendê-lo.

— Ele é meu inimigo, pai. Deve ser destruído.

— Então o transforme em seu amigo, que o destruirá do mesmo modo.

O pequeno Heimerich observou seu pai com dúvida, talvez de desânimo. Mas logo seus olhos brilharam outra vez, parecendo compreender o que Sir Heinrich dissera. Largou a espada no chão e abaixou a cabeça, pedindo desculpas.

— Qual o seu nome, filho da Ordem? — Sir Heinrich perguntou ao colega de seu filho, que trazia um olhar assustado.

— Eu me chamo Fearghal, Sir. Sou filho de Sir Cyngmund.

Sir Heinrich caminhou até os dois e pôs a mão sobre a cabeça de ambos.

— Fearghal e Heimerich — disse, contemplando cada um em seus olhos. — Vocês dois podem continuar brincando. Mas lembrem-se: os amigos nós valorizamos. Os adversários, nós respeitamos — terminou seu sermão e os soltou. De pronto, eles continuaram a brincadeira, como se nada tivesse acontecido.

Os que estavam ali assistindo a toda cena com as crianças, quedaram-se maravilhados. Sir Heinrich era um homem íntegro e honrado, o perfeito cavalheiro. Muito de sua educação e formação se originara dos campos de treinamento em Tranquilitah. Era um militar, sem dúvida. Porém, com sábios atributos. O barão de Askalor fora muito além dos treinos. Durante grande parte de sua vida dedicara-se à oração enquanto viveu no Monastério da Ordem, situado na Floresta dos Viventes. Era, ao mesmo tempo, um monge, um cavaleiro, um político.

— Sir Heinrich — saudou o rei, levantando-se da cadeira onde até agora se sentava junto ao filho, divertindo-se pacientemente com a cena.

O cavaleiro se ajoelhou, abaixando a cabeça.

— Majestade.

— Ergue-se, tolo — ordenou o rei. — E saúda-me com o abraço dos homens valentes desse reino — disse em tom nada sério.

— Vossa Majestade me perdoe pelo comportamento do meu filho — desculpou-se Sir Heinrich, erguendo-se e dando um abraço no rei.

— Não tenho nada a perdoar, Heinrich. Sabe como são crianças, sempre jogadas às emoções, alheias a tudo o que acontece em volta. Deixe-as ingênuas enquanto podem.

— E por falar em criança... — Olhou para o príncipe, ainda sentado, atrás de seu pai. — Vejo que Destino e os deuses o presentearam com mais uma bênção. Permita-me parabenizá-lo, Alteza. — Sir Heinrich caminhou até o príncipe e o saudou.

A expressão do príncipe não era das mais esperadas. Trazia uma face vazia e de profunda tristeza. Não condizia com a realidade da importância do acontecimento. Um abraço fraco, um sorriso inexistente, um aperto de mão de uma donzela, a ausência de palavras de agradecimento. O cavaleiro não deixou de mostrar preocupação.

— Marcellus não está bem. O bebê nasceu muito fraco e franzino — o rei, vendo que Sir Heinrich percebera a expressão de seu filho, tratou logo de explicar. — Os sacerdotes não viram nisso um bom sinal. Mas assim como a maioria dos que estão aqui neste recinto, tenho fé e esperança que os deuses nos favorecerão.

Sir Heinrich logo congelou, pois era conhecedor das leis reais. Sempre que um sucessor direto ao trono de Sieghard nascia, ele era apresentado aos sacerdotes e especialistas na observação dos astros, para que se pudesse interpretar o significado do seu nascimento. Era um costume para, ao mesmo tempo, agradecer aos deuses por mais uma criança que vinha ao mundo, em especial, por ser aquela que permitiria à dinastia reinante permanecer no poder, sempre em nome da Ordem, e identificar sob quais auspícios o novo ser nasceu. Em outras palavras, ele seria acompanhado por quais sentimentos? Dor? Alegria? Dúvida? O que o nascimento dele poderia trazer ao reino de Sieghard? O que ele anunciaria?

Da mesma forma, toda criança nobre nascida com alguma deficiência, abaixo do peso, ou falhas na formação, devia ser devolvida a Maretenebræ, a fim de que não maculasse o sangue da família, nem trouxesse qualquer tipo de prejuízo à linhagem, ao reino ou mesmo à Ordem. O nome dessa prática era Purgação. Às vezes o Mar, através de Destino, não entregava uma boa criança e no futuro ela não poderia servir aos seus deveres. Assim, os nobres a devolviam, rogando ao Grande Mar que, da próxima vez, os enviasse uma saudável. Maretenebræ era como um senhor despótico e tirânico, que fazia das crianças o que bem entendia, era caprichoso e cheio de vaidades.

— Onde está o bebê agora? — indagou Sir Heinrich.

— No templo, com minha esposa. Os sacerdotes foram consultar os deuses — disse o príncipe.

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