segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Eterno Retorno

Por  R. M. Pavani


"(...) E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!’. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" (Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência).
Friedrich Nietzche (1844-1900) dedicou boa parte de sua vida e de suas, muitas vezes, ácidas reflexões, a tratar de uma temática chamada simplesmente de Eterno Retorno. A vida humana é um continuum cíclico e repetitivo, e não linear, ao contrário do que propõem as modernas idéias de progresso liberal.
Junto a essa ideia, acompanha-lhe outra, embora não trabalhada explicitamente por Nietzche, mas por outros autores como Max Weber (1864-1920) e Ortega y Gasset (1883-1955): a de vocação, que não tem nada a ver com o conceito cristão. Ora, não se sabe muito bem por que, mas todos os homens adquirem características peculiares, as quais, por mais caminhos e descaminhos que estes mesmos homens venham a tomar, tendem a aparecer e reaparecer mais cedo ou mais tarde, infinitamente, ciclicamente. Trágico. Fado. Destino. Um filósofo amigo meu – um dos maiores – já dizia que, se os homens mudam, eles mudam pouco. Eles retornam ao seu estado vocacional. Ao que foram chamados pelo Gênio do Universo a serem. Há homens que nasceram para a ciência, outros para a arte. Por mais que o artista tenha de encarar o mundo desencantado da ciência, ele irá se reencontrar, mais dia menos dia, com sua arte há muito esquecida. Mas vamos ver como isso se aplica ao meu caso...
Desde a minha mais tenra infância, fui um apaixonado pelo fantástico: a arte, o cinema, as animações, os livros. Tudo me fazia sonhar. Tudo me fazia desenvolver os sonhos que me encantavam. Lendo, assistindo, ou me colocando nos lugares dos personagens que se alinhavam diante dos meus olhos, eu respondia a esses anseios, e me identificava com eles. A mortalidade da condição humana eternizava-se em todos esses momentos. Foram muitos os livros revirados na casa da minha tia Ângela - materna e professoral como ela só (todos nós temos uma tia professora, já perceberam? E quase todo mundo tem um tio chamado José! O que não é, obviamente, assunto para discutirmos aqui...): contos de fadas, a lendária Série Vagalume, da Editora Ática, e por aí vai.
Eis que nos ávidos anos do Ensino Médio, cujo saudosismo das paixões e dos amigos batem à minha porta todos os dias, conheci um certo Luiz Paulo Guimarães Faustini. Pianista. De vocação e formação. Diferentemente de mim, que no máximo sou um admirador dedicado da arte de ouvir e tocar música boa (detesto Funk, Pagode, Axé, Sertanejo Universitário e coisas desse tipo). 
Além dos talentos melódicos e harmônicos já explícitos, LP (era como nós o chamávamos) também admirava os temas fantásticos, com destaque para a literatura e para os Role Playing Games (RPG). 
Aliás, abro aqui um parêntese. Que maravilhosos mundos podem nos proporcionar o RPG! Uma diversão aliada com a arte e o prazer de se contar histórias. Um intento que beira os limites da perfeição! Indescritíveis momentos e amigos rpgísticos.
Volta e meia, Luiz aparecia com uma história, que estava arquitetada previamente em sua cabeça, cujo enfoque era o Mar. Sempre ele. O título, inclusive, era uma coisa em latim. Interessante. Restava desenvolver o enredo. Mas quem consegue levar o barco adiante, literalmente falando, "por mares nunca dantes navegados", com o vestibular nos seus calcanhares?
Os anos se foram como as areias da ampulheta. Curso de História na UFES. Os melhores momentos da minha vida. Novos amigos, novas discussões, novos focos e enfoques na vida. Mais cientista, menos literato. Mais racional, menos fantasista. O sonho de jogar RPG um tanto quando inatingível, o de escrever um livro de literatura fantástica, esse há muito varrido para o canto escuro do porão da casa assombrada.
Já formado, licenciado em história, e professor efetivado da Rede Pública Estadual de Ensino. Sala de aula. O telefone toca. O Eterno Retorno. Escrever um romance épico? A quatro mãos? Hum... por que não?
Hoje, mais de dois anos depois desde aquela ligação afortunada, as ondas se chocaram com as pedras da praia muitas vezes. Trouxeram muitas coisas, e levaram outras. Reuniões pelo Skype à parte, consegui a muitas penas terminar o Mestrado. Casei-me. Com uma mulher repleta de ternura. Me mudei definitivamente para o município da Serra. Consegui ser dono do meu próprio lar. Virei professor universitário.
E eis que os sonhos retornaram. Inevitáveis como as sombras de uma tarde de verão. Um livro está publicado. Pronto para ser devorado pelos incontáveis seguidores da fantasia. A fantasia que nos torna diferentes dos animais. E também dos homens ordinários.
E o mundo real? Devemos nos esquecer dele? É claro que não. Para todos os efeitos, nós pensamos aquilo que somos. Temos de nos limitar às condições materiais das quais somos as consequencias visíveis. Em termos mais simples, só de sonhos e palavras bonitas não se vive. "Saco vazio não para em pé", já dizia o tataravô de Napoleão. Sendo assim, por que não sonhar acordado e fazer do seu ofício o seu prazer? Por que não unir a necessidade de obter fundos monetários com o deleite que somente uma bela história nos traz?
O Eterno Retorno de Friedrich Nietzche. 






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