terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Capítulo I - A Chave (O Flagelo de Dernessus)

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Nas atuais auroras — continuou o velho prisioneiro —, o diário de Sir Nikoláos é uma das poucas, senão a única prova em toda Sieghard de que forças de Além-Mar estiveram entre nós. Como falei, todas as bibliotecas foram queimadas pelos inimigos naqueles verões. Documentos foram perdidos, outros foram adulterados. Pessoas que sabiam ou poderiam saber de alguma coisa foram caladas ou... digamos... convidadas a pensar de outra maneira. Foi uma verdadeira prostituição com as fontes de nosso passado. Por isso, as informações deste diário devem ser preservadas, a fim de que preparemos nossas futuras gerações para saber lidar com o método extremamente habilidoso, embora cruel, que Linus empregara para arrebanhar mais servidores do Caos.

— Que era...?


— A Pestilência Cega.



— Com uma doença? — riu-se o homem mais jovem, incrédulo e sarcástico.



— Bem, de acordo com os poucos registros disponíveis, Sir Nikoláos faleceu na aurora sexta, à primeira lua plena do verão do ano 476. Em suas últimas páginas, ele narra como combateu soldados de suas próprias fileiras no cerco ao Domo do Rei. Tais soldados tinham sido acometidos pela moléstia na Batalha do Velho Condado. No entanto, auroras depois, lutavam ao lado das forças invasoras.



— Ora, é simples: os inimigos curaram os enfermos e, em troca, receberam apoio...



— Sua lógica faz sentido, porém há muito mais para se entender no mundo do que a lógica. Os soldados não eram apenas curados. Eram renovados. Expressão, olhar, entendimento. Parecia que haviam perdido seu espírito. Não havia mais chama dentro daqueles corpos. Suas pupilas, antes brancas como a neve, tinham mudado de cor e emanavam um brilho azul-celeste.



— O que poderia significar que todos com olhos azuis, assim como os meus, tornaram-se potenciais inimigos?



— Não digo que fossem assim... inimigos. Suas centelhas de vida foram profanadas, trancafiadas. Lutavam e viviam obedecendo àquele que as possuía. No entanto, em um ponto você tem razão: ter olhos naquele tom tornava qualquer homem suspeito de contribuir com os projetos de Linus. Era como uma marca, um sinal daqueles cujo próprio general chamava Alumni, os sem luz. Isso dificultou ainda mais a sobrevivência da Ordem. Além dos próprios inimigos, os sobreviventes teriam de combater qualquer um, mesmo os de seu próprio sangue. Talvez seu primo, seu irmão ou mesmo seu pai.



Aos olhos do homem sentado do lado de fora da cela, o prisioneiro parecia estar bastante resoluto e convincente em seu relato, ao menos até aquele momento.



— Grande história, velho. Porém, em um ponto importante ela é risível: diante desta situação, como sete peregrinos que mal se conheciam conseguiriam fazer alguma diferença? Não estamos falando de generais com um exército, nem de anciãos com um grande poder.



— Dizem os sábios que tudo o que é preciso na vida é ignorância e confiança para que o sucesso se garanta. Por um longo tempo, aqueles que se entregaram confiantes à grande jornada de suas vidas desconheciam essa informação, e muitas outras, e seguiram adiante. Apenas um deles iria saber das consequências da Pestilência Cega antes dos outros. No entanto, vamos nos ater aos fatos. Quando alguém conquista suas terras, você tem três opções: combatê-lo, unir-se a ele, ou fugir e resistir nas sombras do mundo. É verdade que não estou falando de generais com um exército, nem de anciãos com grandes poderes, esses realmente se foram. Ou quase. Estou falando daqueles a quem só restava escolher a terceira opção. Estamos falando de fugitivos com esperança de encontrar paz em algum lugar do reino. Porém a indiferença é covardia, inépcia e parasitismo. O indiferente é o peso morto da história. Chegava o momento de não mais sofrer com pedras e flechas atiradas por uma sorte enfurecida. Era preciso agir. Insurgir-se contra um mar de provações, e em luta pôr um fim.



— Isso é ridículo! — respondeu o jovem, ultrajado. — Se tudo isto que conta for verdade e de fato aconteceu em algum período, quanta ignorância da parte deles, então, supor que fariam a diferença sem a única peça capaz de fazê-la de modo autêntico: um herdeiro do trono. Tome-se um rei morto, com um pai desaparecido 20 verões atrás, e nenhum filho ou irmão.



— Vejo que muita coisa lhe foi ocultada a ponto de desconhecer a sua própria história. — O velho fitou o outro homem por um bom tempo. — Ignorância sim, mas a que os levaria à frente. Os que pegam em armas não sabem das consequências de seus atos. Naquele instante as cartas seriam embaralhadas mais uma vez. Mas quem disse que quem tem a história ao seu lado está sozinho? Ela acompanha os homens, assim como acompanhou aquele que faria a questão-chave ao Oráculo. A verdade é que existia um relato que apenas um punhado de nobres sabia. Incompleto, é verdade. Somente uma pessoa, uma mulher, para ser exato, sobrevivera para contá-lo em sua integridade. E neste momento, ela estava muito, mas muito distante de todos.

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