segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Ensopado


Novamente o Grande Mar fazia mais uma vítima. Eram poucos os que sobreviviam à ira de Maretenebrae. Os que conseguiam, sempre voltavam à mesma costa de onde se lançaram. As intrépidas caravelas, no entanto, todas acabavam destroçadas em meio às escarpas pontiagudas.

Mas com ele foi diferente.

O Grande Mar teria se entregado ao desespero do navegante? Ou seria mais um capricho de Destino?

Murchadh – era esse o nome daquele marinheiro que havia tentado cruzar as impiedosas águas negras de Maretenebrae – foi mais um de centenas que fugiram em seus pequenos barcos a fim de escapar da guerra que assolava seu reino, Sieghard.

Exausto e desidratado, Murchadh não imaginaria que chegaria em terras firmes. Já tinha entregado sua alma a todos os deuses da Ordem desde o naufrágio. Abriu seus olhos, sentiu suas mãos nas areias escuras da praia. Sentiu o cheiro da maresia misturada com a umidade vinda das brumas que encobria toda uma região de pedras negras. Estou vivo, pensou. Mas a primeira visão que teve não deixava claro se este fato seria uma benção ou não. Por Ieovaris, onde estou?

Por horas, Murchadh caminhou entre cascalhos e pedregulhos. Sentia frio, e suava ao mesmo tempo. Suas roupas úmidas e rasgadas apenas serviam para piorar a situação. Seus pés doíam mais a cada passo. Contudo, para o náufrago, ter resistido ao Grande Mar foi sua maior provação.

E foi assim, com esse pensamento, que ele chegou ao início de uma imensa floresta de pinheiros.

E também, ao casebre.


ΩΩΩ

Com os braços cruzados e os ombros recolhidos, Murchadh se aproximou da construção. Não foi difícil para ele constatar que era uma casa rústica de barro com dois pavimentos, mesmo que, estranhamente, as janelas estivessem situadas apenas no primeiro. Também, não demorou muito para que descobrisse o porquê dessa peculiaridade.

A casa era de uma senhora – certamente com mais de 50 verões de idade – que prontamente recebeu o forasteiro, apesar de não falar a sua língua. Sua pele muito clara e suas orelhas pontudas o incomodavam. Mas depois de tomar um ensopado de algum animal de sabor desconhecido, seu incômodo passou rapidamente.

A noite caiu não muito depois da chegada de Murchadh ao casebre, e, assim que a senhora adormeceu, estranhos sons se iniciaram no segundo pavimento. Pareciam ratos, mas Murchadh não se deu por convencido. Destemido como era, levantou de seu leito, acendeu uma tocha e foi averiguar. Abriu o alçapão que dava acesso ao sótão e enfiou a cabeça de uma só vez pelo vão, dando de cara com pequenas criaturas de pele negra, orelhas como a da anfitriã e longos narizes pontudos. Eles se protegiam da luz desesperadamente. Alguns já estavam caídos ao chão, mortos. Os mais distantes se exauriam de modo lento. Até que nenhum mais sobrou em pé.

E foi assim que Murchadh descobriu porque o segundo pavimento não tinha janelas.


ΩΩΩ

A senhora da casa chegou logo a seguir ao acontecido, e o seu inquilino, ao avistá-la, arregalou os olhos com um frio na espinha e o coração palpitando. Se ele tinha acabado de matar seus filhos, ou, quem sabe, seus maridos, Murchadh não poderia saber. Afinal, o que ou quem eram aquelas criaturas?

Para o viajante, esta pergunta nunca foi respondida.

Para a senhora da casa, aquela situação a incomodou. Mas depois de tomar seu ensopado de um animal de sabor desconhecido, seu incômodo passou rapidamente.

Um ensopado que lembrava vagamente o mar.



(Crônicas do Grande Mar, c. I, Anais de Sieghard, seção X)

0 comentários: