O vento gelado das montanhas se
fazia ainda mais severo quando dois vultos negros — insignificantes diante da
paisagem imensa, branca e vazia — avistaram a prisão. A rigorosa caminhada
conduzia-os a um sítio restrito e isolado, não havendo ali presença humana a
pelo menos duas auroras de viagem. O último sinal de civilização encontrava-se
na cidade de Keishu, distante umas noventa milhas.
Acompanhando a busca, os últimos
raios do sol invernal sinalizavam que o frio habitual e quase eterno da região
ainda estava por endurecer-se, de uma forma incrível e indescritível. A última
chama do dia se apagaria repentinamente, fazendo com que uma mescla de obsessão
e medo se apoderasse daquelas duas almas peregrinas. Era de comum acordo que
precisavam se apressar, a fim de se abrigarem junto à fenda arqueada, talhada
em meio às escarpas geladas e, assim, livrarem-se da cortante ventania.
Após passarem com dificuldade
pela abertura do cárcere, respiraram um pouco e acenderam suas lanternas. A luz
turva revelou-lhes um longo corredor de teto baixo. Ao se curvarem para não
ferirem as cabeças nas estalactites, os dois aventureiros perceberam que o
local exalava um odor peculiar.
— Cubra o nariz. O cheiro aqui
não é dos mais agradáveis — disse o mais idoso.
— Já esperava por isso —
replicou o outro. — Porém, você não vai precisar entrar mais do que dois
passos. Sente-se, descanse, e procure se manter aquecido, enquanto cumpro com
essa missão.
À medida
que o homem percorria a caverna, alguns roedores fugiam em pânico, à procura de
um lugar seguro. Temiam o mesmo destino reservado às ossadas que jaziam dentro
das minúsculas celas — umas há poucos verões, outras por tanto tempo
quanto um dragão poderia viver. Porém, todos compartilhando o leito que o
ostracismo e o esquecimento lhes proporcionaram. Não obstante, as curtas, mas
seguras passadas, os morcegos do lugar continuavam impassíveis diante da
presença do invasor.
Ao final do estreito corredor à
direita, por trás das grossas e enferrujadas barras de ferro, distinguia-se uma
figura humana, decrépita qual um dos cadáveres, mas ainda viva. Estava sentada,
a cabeça por entre os joelhos. A luz da lanterna, projetando-se através das
grades, iluminou o rosto pesado, de aparência cansada. Um ancião. Magro, olhos
tristes e distantes, barba branca e comprida, calvo. As roupas podres e
rasgadas que usava, cobriam uma pele empalidecida — embora visivelmente de um
passado moreno —, repleta de rugas e outros sinais do tempo.
O viajante se sentou sobre uma
pedra que havia do lado de fora da cela, e olhando impassível para o velho
homem, iniciou a conversa.
— Vim para que se cumpram suas
últimas vontades.
— Ah! — suspirou longamente o
prisioneiro, mas guardando em sua voz o mesmo tom de seu interlocutor. — Então
você veio. Muitos verões se passaram, não é mesmo?
— É verdade. E ainda assim, você
resiste a essa sepultura — havia certa piedade, ainda que distante, em seus
lábios.
— Você demorou. Por que só
agora?
O outro hesitou.
— Não pude carregar o peso da
consciência em minhas costas. Perdoe-me por não tê-lo ouvido quando foi
julgado.
O homem idoso sorriu-lhe um
sorriso oblíquo.
— No final
de tudo, ninguém precisará perdoá-lo, a não ser você mesmo.
— Perdoar a mim? Não será tão
difícil, eu espero. Mas diga-me, velho, por que quis falar comigo antes de ser
trazido para cá? Não consigo encontrar uma ligação aparente entre nós, a não
ser o fato óbvio de que o homem que você assassinou trabalhava para mim.
— Dizem que
um homicida pode até encontrar um lugar na terra dos deuses, mas um suicida
está condenado à inexistência — disse, olhando para o nada.
— Que quer dizer?
O prisioneiro se fechou,
murmurando dogmaticamente sombras de um passado distante.
— Minhas palavras dizem mais
respeito a você do que a mim mesmo, acredite-me. Há muitos fatos que
desconhece. Você e muitos de sua linhagem. Saiba que a origem deles e a morte
daquele — nessa hora suas palavras vacilaram —, daquele homem, a quem você
chamava de servidor, estão intimamente ligadas. Engana-se se pensa que não tive
motivações para ceifar-lhe a vida. Elas remontam a eventos de outra época. Nem
mesmo o avô de seu avô os testemunhou. Se eu retiver essas informações,
evitando salvar a minha vida, será o mesmo que cometer suicídio.
À primeira vista, o discurso
inicial não havia surtido efeito no homem mais moço.
— Vejo que está tentando
arranjar um motivo para que sua punição seja anulada. Terá que fazer melhor
para que eu continue sentado sobre essa pedra falando com você.
— Se não tivesse feito o que
fiz, você não estaria aqui falando comigo — disse o prisioneiro, levemente
irritado com o ceticismo.
— Pois bem, fale o que quiser.
Se é isso que o faz feliz, vá em frente. No entanto, nada do que me diga o
livrará deste lugar. Sabe disso.
— Neste momento, liberdade ou
opressão são equivalentes para mim.
— Pois que seja. Por onde vai
começar?
— Creio que conhece a história
da Grande Guerra.
— Queria dialogar comigo sobre
isso? — perguntou o homem jovem, surpreso e ultrajado, ao mesmo tempo.
— Conhece a
história da Grande Guerra? — insistiu o encarcerado, pausadamente.
O outro não viu solução que não
entrar naquele mundo hostil chamado passado. Ainda assim, o fez muito
timidamente.
— Bem, conheço o que qualquer um
conhece. Sei pelos cronistas que ocorreu há muito tempo. Coisa de uns 250
verões, eu suponho. Invasores de Além-Mar iniciaram suas investidas no que
então se chamava Velho Condado. Os exércitos do reino foram convocados e se
apresentaram. Houve milhares de mortes em poucas auroras...
A descrição dada pelo jovem não
era tão morta quanto sua pretensa ignorância sobre o tema parecia supor. Não
que tivesse estado lá, o que certamente seria impossível. Mas havia algo em
suas palavras que o atormentavam. Quedou-se em silêncio durante alguns
instantes, observando a figura desmanchada à sua frente. Subitamente, voltou a
falar.
— Não entendo o que esse exame
de história tem a ver com a morte daquele homem, ou comigo.
— Certamente você também não
entende de onde vieram ou como conseguiram chegar a nossas terras.
— De fato. Não há registros
acerca dos momentos anteriores ao primeiro ataque. Com a ocupação que se
seguiu, todas as bibliotecas, inclusive as de Keishu, foram queimadas pelos
invasores. Isso não ajuda muito se você quer saber alguma coisa sobre o
passado. Eu não sei. Ninguém sabe. Nenhum homem vivo sabe. Somente defuntos,
como os soldados que se foram, sabem.
O negociador esperou a deixa
para sussurrar por entre seus dentes podres e enegrecidos.
— Pois eu sei.
— Não me faça rir! — exaltou-se
o interlocutor. Como sabe? Você é algum erudito? Um mestre em documentos
antigos?
— Isso não importa agora.
— Será que os anos de solidão o
deixaram insano?
— Nem tanto. Acontece que sempre
fui fascinado por história. Ela é bastante instrutiva, e moraliza as pessoas.
Embora seja verdade que o conhecimento às vezes ande de mãos dadas com a
insanidade.
— Quer que eu acredite nesse
falatório, vindo justamente de você?
— Acredite no que quiser. Vai me
ouvir ou não?
— Acho que
não tenho escolha, afinal — disse o jovem, acomodando-se melhor sobre o bloco
de pedra. — Pelo menos estarei aquecido aqui dentro. Ademais, houve quem disse
que se fossem retirados todos os méritos de uma boa história, ainda restaria o
de distrair. Sendo assim, então, fale.
Um breve silêncio se fez entre
as duas figuras na penumbra, cortado somente pelo barulho dos ratos que se
arrastavam. O ancião inclinou sua fronte ao alto, como se buscasse as primeiras
palavras de um pesado tomo. Suspirou e, de maneira pausada, iniciou seu relato.
— Era de
manhã, à terceira hora. O céu estava claro e quase não ventava. Em algumas luas
o verão se iniciaria. Foi quando as tropas da Ordem chegaram aos pés das
colinas de Bogdana, onde o exército inimigo estava acampado. Eles eram muitos!
Por Destino, eram numerosos e imbatíveis. Sieghard fora invadido sete auroras
antes. Navios, dezenas deles, nunca antes vistos por nenhum siegardo. Qualquer
embarcação que se construa nas auroras atuais, por maior que seja, não passa de
uma pálida lembrança. Eram imensos. Temíveis. Atrozes. Surpreendentemente
ancorados entre os rochedos perto da costa da desaparecida velha cidade, como
você mesmo lembrou. Uma manobra admirável, devo reconhecer. Nem mesmo
Maretenebræ conseguira derrubá-los. O responsável por tamanha proeza? Linus.
Era esse o seu nome. Linus Firdaus, o general das forças do Caos. Brilhante
estrategista. Ancorando próximo à costa bogdaniana, ele evitou um encontro
frontal com os famigerados canhões das torres de Véllamo, o único local
atracável desse país, fortemente protegido e impenetrável. Exceto ali, toda a
nossa costa é repleta de rochedos pontiagudos, como bem o sabe.
O ouvinte do lado de fora da
cela fitou o ancião.
— Digamos, velho, que seja
verdade o que está dizendo. No entanto, algo me parece estranho. Linus decidiu
atracar com seus navios em outra costa, como se soubesse o que o esperava em
Véllamo. Isso não é possível. Ninguém seria capaz de ter todas essas
informações sem antes ter estudado nosso terreno por vários verões. Ou ele não
sabia nada sobre nossa costa, e teve um belo golpe de sorte, ou sabia
exatamente o que estava fazendo.
— Magnífico! Bem como nenhum
mortal dessas terras viveria o suficiente para adquirir a experiência de dez
mil batalhas e ser capaz de encerrar 120 belonaves em meio às pedras.
— Está dizendo que Linus não era
um homem comum?
— Ele tinha mais do que seus
próprios homens lutando ao seu lado...
1 comentários:
Magnífico!
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