terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CAPÍTULO I - Os Estrategistas




O vento gelado das montanhas se fazia ainda mais severo quando dois vultos negros — insignificantes diante da paisagem imensa, branca e vazia — avistaram a prisão. A rigorosa caminhada conduzia-os a um sítio restrito e isolado, não havendo ali presença humana a pelo menos duas auroras de viagem. O último sinal de civilização encontrava-se na cidade de Keishu, distante umas noventa milhas.

Acompanhando a busca, os últimos raios do sol invernal sinalizavam que o frio habitual e quase eterno da região ainda estava por endurecer-se, de uma forma incrível e indescritível. A última chama do dia se apagaria repentinamente, fazendo com que uma mescla de obsessão e medo se apoderasse daquelas duas almas peregrinas. Era de comum acordo que precisavam se apressar, a fim de se abrigarem junto à fenda arqueada, talhada em meio às escarpas geladas e, assim, livrarem-se da cortante ventania.
Após passarem com dificuldade pela abertura do cárcere, respiraram um pouco e acenderam suas lanternas. A luz turva revelou-lhes um longo corredor de teto baixo. Ao se curvarem para não ferirem as cabeças nas estalactites, os dois aventureiros perceberam que o local exalava um odor peculiar.
— Cubra o nariz. O cheiro aqui não é dos mais agradáveis — disse o mais idoso.
— Já esperava por isso — replicou o outro. — Porém, você não vai precisar entrar mais do que dois passos. Sente-se, descanse, e procure se manter aquecido, enquanto cumpro com essa missão.
À medida que o homem percorria a caverna, alguns roedores fugiam em pânico, à procura de um lugar seguro. Temiam o mesmo destino reservado às ossadas que jaziam dentro das minúsculas celas umas há poucos verões, outras por tanto tempo quanto um dragão poderia viver. Porém, todos compartilhando o leito que o ostracismo e o esquecimento lhes proporcionaram. Não obstante, as curtas, mas seguras passadas, os morcegos do lugar continuavam impassíveis diante da presença do invasor.
Ao final do estreito corredor à direita, por trás das grossas e enferrujadas barras de ferro, distinguia-se uma figura humana, decrépita qual um dos cadáveres, mas ainda viva. Estava sentada, a cabeça por entre os joelhos. A luz da lanterna, projetando-se através das grades, iluminou o rosto pesado, de aparência cansada. Um ancião. Magro, olhos tristes e distantes, barba branca e comprida, calvo. As roupas podres e rasgadas que usava, cobriam uma pele empalidecida — embora visivelmente de um passado moreno —, repleta de rugas e outros sinais do tempo.
O viajante se sentou sobre uma pedra que havia do lado de fora da cela, e olhando impassível para o velho homem, iniciou a conversa.
— Vim para que se cumpram suas últimas vontades.
— Ah! — suspirou longamente o prisioneiro, mas guardando em sua voz o mesmo tom de seu interlocutor. — Então você veio. Muitos verões se passaram, não é mesmo?
— É verdade. E ainda assim, você resiste a essa sepultura — havia certa piedade, ainda que distante, em seus lábios.
— Você demorou. Por que só agora?
O outro hesitou.
— Não pude carregar o peso da consciência em minhas costas. Perdoe-me por não tê-lo ouvido quando foi julgado.
O homem idoso sorriu-lhe um sorriso oblíquo.
— No final de tudo, ninguém precisará perdoá-lo, a não ser você mesmo.
— Perdoar a mim? Não será tão difícil, eu espero. Mas diga-me, velho, por que quis falar comigo antes de ser trazido para cá? Não consigo encontrar uma ligação aparente entre nós, a não ser o fato óbvio de que o homem que você assassinou trabalhava para mim.
— Dizem que um homicida pode até encontrar um lugar na terra dos deuses, mas um suicida está condenado à inexistência — disse, olhando para o nada.
— Que quer dizer?
O prisioneiro se fechou, murmurando dogmaticamente sombras de um passado distante.
— Minhas palavras dizem mais respeito a você do que a mim mesmo, acredite-me. Há muitos fatos que desconhece. Você e muitos de sua linhagem. Saiba que a origem deles e a morte daquele — nessa hora suas palavras vacilaram —, daquele homem, a quem você chamava de servidor, estão intimamente ligadas. Engana-se se pensa que não tive motivações para ceifar-lhe a vida. Elas remontam a eventos de outra época. Nem mesmo o avô de seu avô os testemunhou. Se eu retiver essas informações, evitando salvar a minha vida, será o mesmo que cometer suicídio.
À primeira vista, o discurso inicial não havia surtido efeito no homem mais moço.
— Vejo que está tentando arranjar um motivo para que sua punição seja anulada. Terá que fazer melhor para que eu continue sentado sobre essa pedra falando com você.
— Se não tivesse feito o que fiz, você não estaria aqui falando comigo — disse o prisioneiro, levemente irritado com o ceticismo.
— Pois bem, fale o que quiser. Se é isso que o faz feliz, vá em frente. No entanto, nada do que me diga o livrará deste lugar. Sabe disso.
— Neste momento, liberdade ou opressão são equivalentes para mim.
— Pois que seja. Por onde vai começar?
— Creio que conhece a história da Grande Guerra.
— Queria dialogar comigo sobre isso? — perguntou o homem jovem, surpreso e ultrajado, ao mesmo tempo.
— Conhece a história da Grande Guerra? — insistiu o encarcerado, pausadamente.
O outro não viu solução que não entrar naquele mundo hostil chamado passado. Ainda assim, o fez muito timidamente.
— Bem, conheço o que qualquer um conhece. Sei pelos cronistas que ocorreu há muito tempo. Coisa de uns 250 verões, eu suponho. Invasores de Além-Mar iniciaram suas investidas no que então se chamava Velho Condado. Os exércitos do reino foram convocados e se apresentaram. Houve milhares de mortes em poucas auroras...
A descrição dada pelo jovem não era tão morta quanto sua pretensa ignorância sobre o tema parecia supor. Não que tivesse estado lá, o que certamente seria impossível. Mas havia algo em suas palavras que o atormentavam. Quedou-se em silêncio durante alguns instantes, observando a figura desmanchada à sua frente. Subitamente, voltou a falar.
— Não entendo o que esse exame de história tem a ver com a morte daquele homem, ou comigo.
— Certamente você também não entende de onde vieram ou como conseguiram chegar a nossas terras.
— De fato. Não há registros acerca dos momentos anteriores ao primeiro ataque. Com a ocupação que se seguiu, todas as bibliotecas, inclusive as de Keishu, foram queimadas pelos invasores. Isso não ajuda muito se você quer saber alguma coisa sobre o passado. Eu não sei. Ninguém sabe. Nenhum homem vivo sabe. Somente defuntos, como os soldados que se foram, sabem.
O negociador esperou a deixa para sussurrar por entre seus dentes podres e enegrecidos.
— Pois eu sei.
— Não me faça rir! — exaltou-se o interlocutor. Como sabe? Você é algum erudito? Um mestre em documentos antigos?
— Isso não importa agora.
— Será que os anos de solidão o deixaram insano?
— Nem tanto. Acontece que sempre fui fascinado por história. Ela é bastante instrutiva, e moraliza as pessoas. Embora seja verdade que o conhecimento às vezes ande de mãos dadas com a insanidade.
— Quer que eu acredite nesse falatório, vindo justamente de você?
— Acredite no que quiser. Vai me ouvir ou não?
— Acho que não tenho escolha, afinal — disse o jovem, acomodando-se melhor sobre o bloco de pedra. — Pelo menos estarei aquecido aqui dentro. Ademais, houve quem disse que se fossem retirados todos os méritos de uma boa história, ainda restaria o de distrair. Sendo assim, então, fale.
Um breve silêncio se fez entre as duas figuras na penumbra, cortado somente pelo barulho dos ratos que se arrastavam. O ancião inclinou sua fronte ao alto, como se buscasse as primeiras palavras de um pesado tomo. Suspirou e, de maneira pausada, iniciou seu relato.
— Era de manhã, à terceira hora. O céu estava claro e quase não ventava. Em algumas luas o verão se iniciaria. Foi quando as tropas da Ordem chegaram aos pés das colinas de Bogdana, onde o exército inimigo estava acampado. Eles eram muitos! Por Destino, eram numerosos e imbatíveis. Sieghard fora invadido sete auroras antes. Navios, dezenas deles, nunca antes vistos por nenhum siegardo. Qualquer embarcação que se construa nas auroras atuais, por maior que seja, não passa de uma pálida lembrança. Eram imensos. Temíveis. Atrozes. Surpreendentemente ancorados entre os rochedos perto da costa da desaparecida velha cidade, como você mesmo lembrou. Uma manobra admirável, devo reconhecer. Nem mesmo Maretenebræ conseguira derrubá-los. O responsável por tamanha proeza? Linus. Era esse o seu nome. Linus Firdaus, o general das forças do Caos. Brilhante estrategista. Ancorando próximo à costa bogdaniana, ele evitou um encontro frontal com os famigerados canhões das torres de Véllamo, o único local atracável desse país, fortemente protegido e impenetrável. Exceto ali, toda a nossa costa é repleta de rochedos pontiagudos, como bem o sabe.
O ouvinte do lado de fora da cela fitou o ancião.
— Digamos, velho, que seja verdade o que está dizendo. No entanto, algo me parece estranho. Linus decidiu atracar com seus navios em outra costa, como se soubesse o que o esperava em Véllamo. Isso não é possível. Ninguém seria capaz de ter todas essas informações sem antes ter estudado nosso terreno por vários verões. Ou ele não sabia nada sobre nossa costa, e teve um belo golpe de sorte, ou sabia exatamente o que estava fazendo.
— Magnífico! Bem como nenhum mortal dessas terras viveria o suficiente para adquirir a experiência de dez mil batalhas e ser capaz de encerrar 120 belonaves em meio às pedras.
— Está dizendo que Linus não era um homem comum?
— Ele tinha mais do que seus próprios homens lutando ao seu lado...