domingo, 2 de janeiro de 2011

Capítulo III - Asas nos pés



Como se perseguido por uma matilha de cães selvagens, Driskoll, um dos soldados mensageiros da Ordem, conseguiu tirar fôlego de onde parecia não haver mais. Na iminência da morte, ele se afastou pouco a pouco da frente de batalha, tendo que deixar vários companheiros e irmãos de armas agonizando. Em sua mente, turvada por um grave conflito de consciência, não havia tempo ou espaço para ajudá-los. A morte já os havia buscado, sem chance de retorno.

Contudo, ele sabia que não se tratava de uma investida qualquer, mas sim de um ataque definitivo, de proporções extraordinárias: era necessário pedir auxílio externo de alguma forma. Se já não era possível prestar seus últimos cuidados ou suas últimas homenagens aos soldados que tombavam um após outro à sua frente, era preciso agir com rapidez. 
Subiu-lhe à cabeça, entre outros pensamentos de natureza desordenada, a simples possibilidade de que todos os seus familiares pudessem ser mortos. O jovem era oriundo de uma aldeia aos pés das colinas de Bogdana. Mais do que isso, também pareceu impensável deixar perecer daquela maneira todo o legado do reino, afundado no lamaçal do caos e da desgraça.
Cumpriu-se um conhecido provérbio das terras elevadas de Sumayya, “em uma guerra, nem sempre as pessoas são donas do seu próprio tempo”. Com efeito, ainda na primeira hora após o sol estar a pino, Driskoll transformou os poucos instantes que possuía em um momento estratégico. Era preciso encontrar uma rota de salvação em meio àquele labirinto mortífero no qual seus olhos mergulhavam. Essa mesma salvação, refletia ele, não viria somente para si, mas também para a sua família e o seu povo.
Esquivando-se das incontáveis flechas, e perdendo-se da visão e do olfato dos soldados inimigos, o mensageiro tratou de contar às pressas o efetivo que desembarcava em suas terras. Passo após passo, seja por entre as folhagens ou por detrás dos fortes vigilantes, movimentava-se em silêncio como um verdadeiro predador, embora naquele momento não pudesse agir como tal.
Das belonaves que chegavam, Driskoll contou cerca de 120 unidades, cada uma equipada com 15 a 20 canhões grandes. Essa cifra colossal explicava porque as áreas litorâneas estavam sendo devastadas em tão pouco tempo.
O número de soldados também era de oprimir o peito, uns 300 por navio. Não era preciso ser nenhum doutor em aritmética para projetar o total de contingentes em torno de 36 mil soldados.
Driskoll sufocou um grito de dor ao lembrar-se que pouco mais de 500 homens, juntamente com ele, guardavam o litoral naquela manhã.
Com as pernas trêmulas pelo medo e pelo horror que lhe tomava em poucas horas, montou em seu corcel e partiu rumo ao forte de fronteira mais próximo, uma fortificação localizada a 50 milhas reais a noroeste dali. A instalação se encontrava entre a próspera província marítima da Salácia e as floridas — embora agora violadas — terras de Bogdana.
A trilha atravessada por Driskoll era privilegiada pela magnífica paisagem. As belas planícies não contavam com muitas árvores, mas eram repletas de campos cobertos por lírios, papoulas e esporeiras, de vários tipos e cores. A leste do jovem cavaleiro repousavam as silenciosas colinas de Bogdana, uma formação de relevo antiga, que cortava praticamente a metade do território da província, prolongando-se em direção à fronteira com as planícies áridas de Azaléos ao leste; e o Bosque dos Lordes, em Askalor, ao norte.
Cobertas por uma vegetação rasteira, de cor verde-clara, as colinas pareciam dançar ao sabor da brisa que vinha de Maretenebræ. Qualquer um que as contemplasse, ainda que fosse por um breve tempo, jamais poderia imaginar que no mundo houvesse espaço para dor, fúria, crueldade, sangue ou morte. A sensação de invencibilidade e harmonia não coadunava com o espetáculo de cólera encenado nos arredores do Velho Condado.
No limiar da nona hora, o mensageiro Driskoll avistou nas pesadas edificações do forte fronteiriço, sua oportunidade de salvar a terra que tanto amava. O clima da região era quente, e sua garganta clamava por água fresca. A montaria também dava sinais fortes de exaustão. No entanto, a vontade de saciar-se era desprezível se comparada ao desejo de aliviar o fardo carregado desde que partira. Os céus pareciam lhe pesar as costas, pois, ao mesmo tempo em que guerreava contra as necessidades do corpo, em prol de seu reino, também pensava em todos os seus companheiros mortos e, é claro, em todos os que poderiam morrer, caso as tropas de todo o reino não fossem unificadas diante de uma meta. No entanto, e isso seria uma conclusão óbvia, mesmo que o rei conseguisse inspirar o dobro do número total presente em suas tropas, fatalmente, haveria uma guerra de proporções nunca testemunhadas por aquela geração.
A sentinela que estava de guarda no topo da torre sul, vendo aproximar-se, a galope, um cavaleiro aparentemente desconhecido, acionou a sineta de advertência.
— Cavaleiro!
Nesse instante, todas as atenções do forte se voltaram para aquela minúscula figura, se aproximando de forma veloz. Ao se perceber pelos trajes e pelos sinais que fazia que se tratava de um mensageiro da Ordem, o alerta cessou, embora a preocupação ainda se fizesse constante.
— Vida longa a Marcus e a plenitude da Ordem! — disse Driskoll, ofegante.
— Vida longa! O que o traz aqui, Driskoll de Bogdana?
— O reino está sendo profanado! Avise Askalor imediatamente.

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